domingo, 16 de março de 2014

O Vaso

O ar gélido cortava-me como uma navalha. A neblina baixava-se pelos túmulos, aumentando o ar fúnebre daquela manhã de junho. Um cheiro salgado tocava-me as narinas, talvez fossem o cheiro das lagrimas, que habitavam aquele lugar.

Estava naquele cemitério para despedir de meu tio. Apesar de nunca sermos muito ligados, sua morte havia me deixado  abalado. Não vou dizer que chorei, pois seria mentira. Pelo menos não aquele choro sonoro. Chorei em silêncio, soquei paredes, queria que aquela dor emocional fosse suplantada pela dor física de minhas mãos machucadas.

Em todo caso, a dor foi diminuindo, lembrei-me por um segundo que acreditava em vida após a morte. E que a morte é o sinal de que vivemos, a cereja de um bolo que fazemos dia após dia e que em algum dia precisa ser finalizado.  

Na hora do enterro, o padre com suas bonitas vazias palavras, tentava dar algum conforto, para aqueles que ali estavam. Algo sobre só haver honra em ser chamado por nosso Senhor. Eu já não prestava atenção naquilo.

Estava hipnotizado pela imagem de um rapaz ao fundo do enterro, que estava diante de 2 vasos, o primeiro estava com lindas rosas brancas, que encantavam os olhos de quem a via, o segundo que parecia só terra. 

O que me intrigava naquela imagem, não era o jovem. Nem os vasos, mas sim o fato dele estar regando o vaso que aparentemente só tinha terra.

Com o fim do enterro, depois de dar um ultimo abraço em minha tia e meus primos, que iam embora cabisbaixos. Naquela triste manhã  tirada de um filme típico de drama. Eu continuei ali. Parado por um momento para contemplar o tumulo do meu tio. 

E depois segui até onde se encontrava o jovem. Naquele momento o jovem sentava-se no chão úmido, vestia uma calça suja e uma camiseta velha, apresentava uma magreza quase cadavérica. Seus cabelos loiros bagunçados e sem brilho, pareciam uma antitese com o sol que se abria ali.

 O que era maior? A minha curiosidade sobre aquela triste figura, que parecia ter saído de uma cova. Ou a vergonha de intrometer-me em um assunto possivelmente tão duro para ele. Não sabia. 

-Bom Dia. 

Arrisquei envergonhado.

-Bom Dia, senhor, aproxime-se não precisa ter vergonha ou medo.

-Quem disse que eu estava envergonhado?!

-Ouvi seus passos. E também quando parou duas vezes, suponho que pensando se seria certo me abordar. Deixe-me apresentar, meu nome é Apolo.

Dito isso levantou, e virou, tamanha fora minha surpresa em ver aquele rosto jovem e ao mesmo tempo tão sofrido. Mesmo o sorriso caloroso de meu novo amigo não foi o suficiente, para tirar a tristeza daqueles olhos brancos. Apolo era cego.

Aquilo explicava ele regar o jarro de terra, ele jamais poderia ver a beleza daquelas rosas.

-Desculpe-me, não quero incomoda-lo. Meu nome é Michael.

Estiquei a mão automaticamente, só depois entendendo a burrice de meu gesto.

Percebendo meu constrangimento. Apolo disse rindo:

-Suponho que tenha me esticado a mão, não fique envergonhado. Já estou acostumado. E também não é incomodo algum, mesmo estando junto de minha querida irmã, é um pouco solitário aqui...

-É.. Eu sinto muito pela sua irmã. Ela devia ser bem jovem, né?

-Sim, tanto quanto eu. Éramos gêmeos, tenho hoje 24 ou 25 anos nunca me lembro. Ela morreu com 18, eu acho. 

-Não se lembra? Como assim?

Ele riu de uma forma tão sincera, mas ao mesmo tempo tão amarga que começava a me questionar sobre a sanidade daquele cidadão. Suas olheiras, ficar parado no meio de um cemitério, não parecia hábito de uma pessoa saudável.

-Já esteve preso, meu amigo? Seja numa cadeia, ou no trânsito, ou a uma rotina que não deseja, como é mais comum hoje em dia?

A pergunta me pegou de surpresa, um dia antes estava refletindo sobre o extenuante trabalho de escritório e o quanto estar preso aquela rotina, aumentava minha distância daqueles familiares que se tornavam estranhos em velório.

-Nunca estive preso, por quê? Você já?

-Sim, fui preso acusado de ter matado minha irmã, mas no fim fui inocentado. Acho que foram 3 anos na cadeia. Mas posso dizer meu amigo, quando se está preso você e o tempo travam uma cruel batalha, você busca mata-lo e ele a você, perdi as contas de quantas pessoas vi enlouquecerem por isso. No fim, entendi que o tempo é uma construção humana totalmente relativa, uma ilusão criada para satisfazer o nosso anseio de que tudo tem um começo, meio e fim. Então eu não tenho certeza, porque não me interessa quantos anos eu tenho, quantos você me dá?

-Sinceramente? Mais de 30.

Meu sarcasmo aparentemente divertiu meu colega.

-Talvez eu tenha, já vivi segundos que pareciam anos e anos que pareciam dias... Não importa. Você não me veio ouvir discursar a teoria da relatividade. O que o traz aqui?

-Bem, eu fiquei curioso, por que regava o vaso de terra vazia e não o belo vaso de rosas? Mas pelo que vejo, você não pode ver a beleza das rosas e isso explica seu desinteresse por elas.

-Não querido Mike, não. Pelo contrario, acho que vejo mais da beleza dessas rosas que você, sem ofensas.

-Como isso é possível? Você é cego.

-Você acredita em Deus? Acha o belo?

-Sim, mas o que isso...

-Importa Mike, porque você não o vê com os olhos  físicos. Mas você o sente. O fato de você não ver algo, não te torna cego, o fato de você não sentir, isso lhe torna cego.  Você diz que essas rosas são belas, e realmente são. Mas o que elas representam? Vou dar uma dica: minha mãe que as trouxe.
Toda aquela retórica de livro de autoajuda, me deixavam atordoado, mas não o deixei sem resposta.

-Mostram o amor de uma mãe. O amor mais puro e belo que existe e se pensar o contrário, és tão cego de sentimento, quanto de visão.

Novamente minha agressividade divertiu Apolo, que pouco parecia ofendido.

-Não amigo, apesar do amor de mãe ser o mais belo, não é isso que essas rosas representam. Elas representam a mais pura e simples dor.

Um sorriso gélido como o começo daquela dia percorreram os lábios de Apolo, que parecia chorar tão calado quanto eu. E assim continuou:

-A dor de uma mãe, que perdeu a filha que amou e ao mesmo tempo perdeu o filho que sempre desejou amar, mas nunca pode pela sua deficiência. Em todo caso, não é por isso que não alimento as rosas.

-E por que é então?

-Esse vaso que você diz não haver nada, tem dentro dele uma semente que está a germinar, enquanto as rosas já estão aqui germinadas, destinadas a morte. A vida e as relações delas estão representadas nesses vasos. O que você prefere: Manter vivo o belo que logo acabará ou buscar criar raízes profundas de uma Árvore que por mais demorada que seja seu crescimento, ele estará ali sempre a se fortalecer?

-Eu não sei.

-Descubra meu amigo, pois ao falar comigo, uma planta você recebeu. A planta que simboliza o nosso relacionamento. Cabe a você escolher o que ela será? Uma grama que você passará por cima e nem se lembrará? Uma rosa que apresenta uma beleza momentânea?  Ou uma árvore de raízes profundas e de copa frondosa?

Aquelas palavras me atingiram com força, parei para refletir quais relações eu estava cultivando, será que valeriam a pena? Dessa vez meu choro não foi velado, diante daquele cenário de frio e morte, um raio de sol desceu a me aquecer e iluminar as lágrimas que lentamente caiam sobre meu rosto. Despedi do meu novo amigo, com o qual cultivei uma frondosa árvore.

Ele me explicou mais tarde, o que sucederá no dia em que sua irmã morreu. Ele estava brincando com a arma de caça do pai e ao atirar sua irmã estava na direção da arma. O tiro foi fatal. Sua mãe nunca lhe perdoou. Apesar de ter esperado julgamento na cadeia, foi absolvido, não havia como culpar um cego por matar a própria irmã. Um dia num de nossos almoços tive a audácia de perguntar-lhe se ele teria  tido a intenção de mata-la. E ele respondeu:

-Se eu ouvi seu lento caminhar no dia em que nos conhecemos, acha que não seria capaz de ouvir uma menina escandalosa correr?

Ele sorriu. E pela primeira vez desde o dia que o conheci  vi seus olhos brilharem. Uma chama fria do meu filósofo amigo assassino. 

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