O ar gélido cortava-me como uma navalha. A neblina
baixava-se pelos túmulos, aumentando o ar fúnebre daquela manhã de junho. Um
cheiro salgado tocava-me as narinas, talvez fossem o cheiro das lagrimas, que
habitavam aquele lugar.
Estava naquele cemitério para despedir de meu tio. Apesar de
nunca sermos muito ligados, sua morte havia me deixado abalado. Não vou dizer que chorei, pois seria
mentira. Pelo menos não aquele choro sonoro. Chorei em silêncio, soquei
paredes, queria que aquela dor emocional fosse suplantada pela dor física de
minhas mãos machucadas.
Em todo caso, a dor foi diminuindo, lembrei-me por um
segundo que acreditava em vida após a morte. E que a morte é o sinal de que
vivemos, a cereja de um bolo que fazemos dia após dia e que em algum dia
precisa ser finalizado.
Na hora do enterro, o padre com suas bonitas vazias
palavras, tentava dar algum conforto, para aqueles que ali estavam. Algo sobre
só haver honra em ser chamado por nosso Senhor. Eu já não prestava atenção
naquilo.
Estava hipnotizado pela imagem de um rapaz ao fundo do enterro,
que estava diante de 2 vasos, o primeiro estava com lindas rosas brancas, que
encantavam os olhos de quem a via, o segundo que parecia só terra.
O que me
intrigava naquela imagem, não era o jovem. Nem os vasos, mas sim o fato dele
estar regando o vaso que aparentemente só tinha terra.
Com o fim do enterro, depois de dar um ultimo abraço em
minha tia e meus primos, que iam embora cabisbaixos. Naquela triste manhã tirada de um filme típico de drama. Eu
continuei ali. Parado por um momento para contemplar o tumulo do meu tio.
E
depois segui até onde se encontrava o jovem. Naquele momento o jovem sentava-se no chão úmido, vestia uma
calça suja e uma camiseta velha, apresentava uma magreza quase cadavérica. Seus
cabelos loiros bagunçados e sem brilho, pareciam uma antitese com o sol que se
abria ali.
O que era maior? A minha curiosidade sobre aquela
triste figura, que parecia ter saído de uma cova. Ou a vergonha de
intrometer-me em um assunto possivelmente tão duro para ele. Não sabia.
-Bom Dia.
Arrisquei envergonhado.
-Bom Dia, senhor, aproxime-se não precisa ter vergonha ou
medo.
-Quem disse que eu estava envergonhado?!
-Ouvi seus passos. E também quando parou duas vezes, suponho
que pensando se seria certo me abordar. Deixe-me apresentar, meu nome é Apolo.
Dito isso levantou, e virou, tamanha
fora minha surpresa em ver aquele rosto jovem e ao mesmo tempo tão sofrido. Mesmo o sorriso caloroso de meu novo amigo não foi o suficiente, para tirar a
tristeza daqueles olhos brancos. Apolo era cego.
Aquilo explicava ele
regar o jarro de terra, ele jamais poderia ver a beleza daquelas rosas.
-Desculpe-me, não quero incomoda-lo. Meu nome é Michael.
Estiquei a mão automaticamente, só depois entendendo a
burrice de meu gesto.
Percebendo meu constrangimento. Apolo disse rindo:
-Suponho que tenha me esticado a mão, não fique
envergonhado. Já estou acostumado. E também não é incomodo algum, mesmo estando
junto de minha querida irmã, é um pouco solitário aqui...
-É.. Eu sinto muito pela sua irmã. Ela devia ser bem jovem, né?
-Sim, tanto quanto eu. Éramos gêmeos, tenho hoje 24 ou 25
anos nunca me lembro. Ela morreu com 18, eu acho.
-Não se lembra? Como assim?
Ele riu de uma forma tão sincera, mas ao mesmo tempo tão amarga
que começava a me questionar sobre a sanidade daquele cidadão. Suas olheiras,
ficar parado no meio de um cemitério, não parecia hábito de uma pessoa
saudável.
-Já esteve preso, meu amigo? Seja numa cadeia, ou no
trânsito, ou a uma rotina que não deseja, como é mais comum hoje em dia?
A pergunta me pegou de surpresa, um dia antes estava
refletindo sobre o extenuante trabalho de escritório e o quanto estar preso
aquela rotina, aumentava minha distância daqueles familiares que se tornavam
estranhos em velório.
-Nunca estive preso, por quê? Você já?
-Sim, fui preso acusado de ter matado minha irmã, mas no fim
fui inocentado. Acho que foram 3 anos na cadeia. Mas posso dizer meu amigo,
quando se está preso você e o tempo travam uma cruel batalha, você busca
mata-lo e ele a você, perdi as contas de quantas pessoas vi enlouquecerem por
isso. No fim, entendi que o tempo é uma construção humana totalmente relativa,
uma ilusão criada para satisfazer o nosso anseio de que tudo tem um começo,
meio e fim. Então eu não tenho certeza, porque não me interessa quantos anos eu
tenho, quantos você me dá?
-Sinceramente? Mais de 30.
Meu sarcasmo aparentemente divertiu meu colega.
-Talvez eu tenha, já vivi segundos que pareciam anos e anos
que pareciam dias... Não importa. Você não me veio ouvir discursar a teoria da
relatividade. O que o traz aqui?
-Bem, eu fiquei curioso, por que regava o vaso de terra
vazia e não o belo vaso de rosas? Mas pelo que vejo, você não pode ver a beleza
das rosas e isso explica seu desinteresse por elas.
-Não querido Mike, não. Pelo contrario, acho que vejo mais
da beleza dessas rosas que você, sem ofensas.
-Como isso é possível? Você é cego.
-Você acredita em Deus? Acha o belo?
-Sim, mas o que isso...
-Importa Mike, porque você não o vê com os olhos físicos. Mas você o sente. O fato de você não
ver algo, não te torna cego, o fato de você não sentir, isso lhe torna
cego. Você diz que essas rosas são
belas, e realmente são. Mas o que elas representam? Vou dar uma dica: minha mãe
que as trouxe.
Toda aquela retórica de livro de autoajuda, me deixavam
atordoado, mas não o deixei sem resposta.
-Mostram o amor de uma mãe. O amor mais puro e belo que
existe e se pensar o contrário, és tão cego de sentimento, quanto de visão.
Novamente minha agressividade divertiu Apolo, que pouco
parecia ofendido.
-Não amigo, apesar do amor de mãe ser o mais belo, não é
isso que essas rosas representam. Elas representam a mais pura e simples dor.
Um sorriso gélido como o começo daquela dia percorreram os
lábios de Apolo, que parecia chorar tão calado quanto eu. E assim continuou:
-A dor de uma mãe, que perdeu a filha que amou e ao mesmo
tempo perdeu o filho que sempre desejou amar, mas nunca pode pela sua deficiência.
Em todo caso, não é por isso que não alimento as rosas.
-E por que é então?
-Esse vaso que você diz não haver nada, tem dentro dele uma
semente que está a germinar, enquanto as rosas já estão aqui germinadas,
destinadas a morte. A vida e as relações delas estão representadas nesses vasos.
O que você prefere: Manter vivo o belo que logo acabará ou buscar criar raízes
profundas de uma Árvore que por mais demorada que seja seu crescimento, ele
estará ali sempre a se fortalecer?
-Eu não sei.
-Descubra meu amigo, pois ao falar comigo, uma planta você
recebeu. A planta que simboliza o nosso relacionamento. Cabe a você escolher o
que ela será? Uma grama que você passará por cima e nem se lembrará? Uma rosa
que apresenta uma beleza momentânea? Ou
uma árvore de raízes profundas e de copa frondosa?
Aquelas palavras me atingiram com força, parei para refletir
quais relações eu estava cultivando, será que valeriam a pena? Dessa vez meu
choro não foi velado, diante daquele cenário de frio e morte, um raio de sol
desceu a me aquecer e iluminar as lágrimas que lentamente caiam sobre meu
rosto. Despedi do meu novo amigo, com o qual cultivei uma frondosa árvore.
Ele me explicou mais tarde, o que sucederá no dia em que sua
irmã morreu. Ele estava brincando com a arma de caça do pai e ao atirar sua irmã
estava na direção da arma. O tiro foi fatal. Sua mãe nunca lhe perdoou. Apesar
de ter esperado julgamento na cadeia, foi absolvido, não havia como culpar um
cego por matar a própria irmã. Um dia num de nossos almoços tive a audácia de
perguntar-lhe se ele teria tido a
intenção de mata-la. E ele respondeu:
-Se eu ouvi seu lento caminhar no dia em que nos conhecemos,
acha que não seria capaz de ouvir uma menina escandalosa correr?
Ele sorriu. E pela primeira vez desde o dia que o conheci vi seus olhos brilharem. Uma chama fria do meu
filósofo amigo assassino.